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Uma formação profissional antirracista precisa ter a questão étnico-racial em sua centralidade
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Uma formação profissional antirracista precisa ter a questão étnico-racial em sua centralidade
21/03/2023
O Serviço Social precisa enfrentar o debate da questão étnico-racial como uma das questões centrais na sua formação, trabalho e pesquisas porque, além de ser uma questão estrutural, se reproduz no âmbito do racismo institucional e está presente em todos os espaços sociais
O Serviço Social atua nas mais diferentes expressões da questão social e para isso precisa fazer uma leitura da realidade que contemple toda a complexidade das relações sociais. O racismo é um dos elementos estruturantes dessas relações no modelo capitalista e, por isso, pensar a profissão e a formação exige que seja feita uma leitura crítica e radical da questão étnico-racial, entendendo seus fundamentos e compreendendo como essas relações foram construídas ao longo da história do Brasil e do próprio capitalismo.
Para a professora do departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Política Social (PPGPS) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Maria Helena Elpídio, na particularidade brasileira a questão racial sofre um processo de invisibilização e de negação de uma história baseada na exploração do trabalho das pessoas negras escravizadas que se constitui enquanto uma base fundamental para a construção de riqueza no país. Contraditoriamente, é essa população que mais sofre com todos os impactos das desigualdades provocadas pelo capitalismo.
“O Serviço Social vai atuar exatamente nas contradições desse sistema que produz um conjunto de desigualdades sociais, de estigmas e de formas de opressão que vão culminar em fenômenos como a violência, a fome, a falta de acesso a políticas públicas, o racismo ambiental, e o genocídio da população negra e indígena, o que é sistemático nesse país. O Serviço Social precisa necessariamente enfrentar o debate da questão étnico-racial como uma das questões centrais na sua formação, trabalho e pesquisas justamente porque, além de ser uma questão estrutural, se reproduz no âmbito do racismo institucional. Está presente em todos os espaços sociais, que por sua vez são espaços onde atuamos. Entender a complexidade dessas relações e a gravidade desse processo sistemático de violência contra as populações afro-brasileiras e indígenas faz com que essa profissão tenha e assuma um compromisso ético-político que é um traço da profissão”, explicou a professora que também é suplente docente da Abepss no biênio 2023-2024.
Estruturante
Ela explica que falar do projeto ético-político é falar de uma sociedade e de conjuntos de relações antirracistas, anticapitalistas, antissexistas, antiLGBTQIA+fóbicas. Para enfrentar essas diferentes formas de opressão e superar as explorações, que também se dão nas relações do racismo, do patriarcado, é preciso ter a dimensão da necessidade de transformação radical desse modelo de sociedade.
“Por isso é tão importante trazer o debate para a centralidade das ações da Abepss nesse próximo biênio e discutir em todos os aspectos da formação (ensino, pesquisa e extensão). Pensar que as relações sociais estão pautadas também no racismo enquanto elemento estruturante e que se desdobra no racismo institucional. Pensar na questão étnico-racial é pensar enquanto elemento constitutivo do conjunto das relações. Portanto, precisa ser constitutiva no conjunto da nossa atuação profissional que tem como público, em sua maioria, a população negra, em especial a mulher negra. Falar disso na formação é fundamental. Temos um contingente de mulheres negras na profissão e de jovens negros que acessam a universidade, em especial com a política de cotas, e precisamos avançar em uma pesquisa que tenha sentido para a sociedade brasileira. O debate é urgente e central. O Serviço Social avança ao incorporar essa pauta e a Abepss avança quando traz para a centralidade da gestão um conjunto de ações importantes para uma formação antirracista”, defendeu.
Capitalismo
A discriminação racial opera na engrenagem capitalista e na manutenção das opressões sobre a classe trabalhadora, e o debate dentro do Serviço Social tem sido feito dentro do Brasil, mas também em articulação com pesquisadores de outros países. A discriminação racial, reproduzida cotidianamente, azeita a engrenagem capitalista, pois ao hierarquizar seres humanos em função da cor da pele, alimenta todas as formas de desigualdades e preconceitos. O processo de desumanização gerada pelo próprio capitalismo se intensifica com a discriminação racial que tem diferentes formas nos e entre os diferentes países.
É o que explica Esther Luíza de Souza Lemos, assistente social e docente na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Ela também é coordenadora nacional de relações internacionais da Abepss no biênio 2023 – 2024. “A partir da sua autocrítica e reconceituação, o Serviço Social no Brasil tem contribuído no combate à discriminação racial e ao racismo, no trabalho com crítica. Individualmente, por meio de um número crescente de profissionais, e coletivamente na ação de suas entidades representativas, destacadamente no conjunto CFESS/CRESS e ABEPSS”.
Para a professora, a participação em seminários e congressos internacionais tem sido um espaço onde este posicionamento ético-político tem se expressado. Além disso, a participação sistemática e a incidência brasileira junto às organizações internacionais da categoria têm ampliado e multiplicado a voz e o posicionamento contra todas as formas de opressão.
“O racismo e a discriminação racial têm particularidades nacionais que se explicam pela formação social, econômica, política e cultural de cada nação, porém, estas particularidades só se explicam na constituição histórica do modo de produção capitalista. Analisá-las é fundamental no fortalecimento do trabalho e da formação profissional antirracista e anticapitalista. Amplificar nossa voz e dialogar com outras culturas e países é fundamental para avançarmos na luta, pois ela é internacionalista”, ressaltou.
Desafios
Esther Luíza de Souza Lemos lembra que ainda há muito para avançar e que é preciso somar forças na luta contra a discriminação racial e todas as formas de desigualdades que se agravam frente à barbárie capitalista. “Considero que o primeiro grande desafio é a vinculação ao movimento do real, aos movimentos e lutas sociais por emancipação política e humana, com pesquisa concreta de situações concretas. É fundamental a compreensão teórica e política de que a questão racial é um elemento estruturante da ‘questão social’, não uma mera expressão. Sendo assim, não deve ser tratada de forma isolada ou transversal tanto nos projetos políticos-pedagógicos dos cursos quanto nas ações, estudos e pareceres construídos no cotidiano profissional. A questão racial é constitutiva das relações de produção e reprodução da vida social na sociabilidade capitalista”.
O planejamento da gestão da Abepss, realizado de 6 a 10 de março de 2023, aponta ações estratégicas para o próximo biênio (2023-2024). A professora destaca os seguintes:
– Ampliar o debate junto às Unidades de Formação Acadêmica - UFAs com aprofundamento do documento dos “Subsídios sobre o debate étnico racial na formação em Serviço Social” (2018) e a implementação da Plataforma Antirracista publicizada no ENPESS de 2022;
– Ampliar o debate e enraizamento na pós-graduação com pesquisas, redes de pesquisadores, produção e disseminação do conhecimento envolvendo todos os Grupos Temáticos de Pesquisa - GTPs e sua inserção em todas as regiões do país;
– Ampliar o debate sobre as relações étnico-raciais no âmbito das relações internacionais.
Racismo estrutural
A formação acadêmico-profissional em Serviço Social deve contribuir no combate e enfrentamento à discriminação racial. Porém, é necessário afastar-se da aparência comportamental e moral da discriminação racial, buscando compreender e apreender o que lhe dá forma e conteúdo, ou seja, o racismo estrutural.
O assistente social e representante discente nacional de pós-graduação na Abepss, Leonardo Dias Alves, defende que é indispensável reconhecer que o Serviço Social brasileiro nasceu e se desenvolveu, consolidando-se como uma especialização do trabalho coletivo na divisão social e técnica do trabalho, em uma sociedade que tem o racismo como uma estrutura social. Dessa forma, será possível fortalecer o combate e o enfrentamento à discriminação racial no âmbito da formação acadêmica e do trabalho profissional.
“Uma das respostas na qual o Serviço Social pode investir é o enraizamento do debate das relações étnico-raciais, tendo como prisma os ‘Subsídios para o debate sobre a questão Étnico-Racial na Formação em Serviço Social’, tanto na formação acadêmico-profissional como na educação permanente. A realização, por exemplo, de Abepss itinerante com a temática sobre o enfrentamento e o combate ao racismo no âmbito do Serviço Social fortalece os processos de intervenções antirracistas das/os assistentes sociais”, explicou.
Plataforma Antirracista
O representante discente nacional na Abepss lembra que o Serviço Social brasileiro hoje tem uma importante ferramenta para enraizar esse debate: a Plataforma Antirracista, hospedada no site da Abepss. “Trata-se de uma espécie de biblioteca virtual especializada no debate das relações étnico-raciais e do Serviço Social. A plataforma está sistematizada por meio de sugestões por área para a introdução ao debate sobre a questão e as relações étnico-raciais na formação em Serviço Social”.
Leonardo Dias Alves destaca que muitas das referências que estão disponíveis na Plataforma Antirracista são produções de assistentes sociais, em sua maioria mulheres negras, e deixa o convite para que toda a categoria de assistentes sociais se apropriem desse debate, a partir de leituras críticas e com reflexões densas sobre a realidade do Brasil e da América Latina.
“Estou convencido de que esse é o caminho que precisamos trilhar, para que possamos compreender o processo de (re)produção do racismo no modo de produção capitalista como um problema que inviabiliza a materialização do projeto ético-político. Dessa forma, teremos a capacidade profissional de, pelo menos, identificar as expressões do racismo no cotidiano da sociedade, e, portanto, nos espaços sócio-ocupacionais, dentre eles a própria universidade. Chegou a hora de retirar as vendas do mito da democracia racial e de assumir a postura crítica de reconhecer que assistentes sociais, como quaisquer outras/os profissionais, podem produzir e reproduzir racismo. O que difere a profissão das demais é o nosso compromisso ético-político explicito e hegemônico entre a categoria que direciona essas/es profissionais para a necessidade de se apropriar e se aprofundar no conhecimento sobre o fenômeno do racismo estrutural”, concluiu.
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